Uivos da desigualdade:86% da riqueza nas mãos dos 10% mais ricos.
Uivos da
desigualdade
Perto dos obscenamente perdulários super-ricos do capitalismo
global, Gatsby era um inofensivo playboy
Os dados são estarrecedores. Ano passado, a riqueza mundial
bateu um recorde: US$ 241 trilhões. Se dividida igualitariamente, daria US$
51.600 por pessoa. Essa partilha sempre foi injusta, mas não na escala atual,
com 86% da riqueza nas mãos dos 10% mais ricos do planeta, razão pela qual
tanto se tem falado ultimamente na questão da desigualdade social. E,
ressuscitando Thornstein Veblen, no consumo conspícuo da classe ociosa e dos
crupiês do cassino financeiro, onipresentes na mídia, na ficção e nas telas.
Di Caprio como Belfort, flagrado no seu hobby favorito: jogar
dinheiro fora.
Gordon Gekko e seu deletério mantra ("A cobiça é
saudável"), Jordan Belfort, o lobo de Wall Street, rasgando dinheiro e
financiando a miséria alheia – perto desses, Jay Gatsby, que aliás viveu mais
próximo da idade de ouro econômica escrutinada por Veblen, não passava de um
romântico e inofensivo playboy, de um ocioso do bem. Às vezes desconfio que até
(ou sobretudo) em ostentação ele perderia para os super-ricos do capitalismo
globalizado. Com seu estilo de vida obscenamente perdulário, gastando a rodo, comprando
à la louca bens e serviços supérfluos e hiperinflacionados, a nova safra de
estroinas zilionários (emergentes russos, chineses e africanos, petroarcas do
Oriente Médio, socialites, herdeiros e empresários deslumbrados, celebridades
do esporte e do show business) tem sempre um espetáculo deprimente a nos
oferecer. E uma plateia cativa de panacas para incentivá-la com sua atenção e
inveja.
Iates transatlânticos, Lamborghinis folheados a ouro (pela
bagatela de US$ 7,5 milhões), relógios de pulso cravejados de diamantes que
dariam para comprar uma ou duas Mercedes, apartamentos de US$ 90 milhões em
Manhattan, despesas de hotéis astronômicas (sai por $ 15 mil dormir uma noite
na cobertura do Fairmont de São Francisco em que JFK faturou MM), festas extravagantes
(brasileiros já gastaram US$ 30 mil com aniversários de criança no Plaza de
Nova York) – uma desfaçatez atrás da outra, entusiasticamente cobertas e
atualizadas pelo canal de notícias sobre negócios CNBC, que, não satisfeito em
abrigar em seu blog um "editor de riqueza", Robert Frank, lançou há
dez dias uma série bajuladora sobre "a vida secreta dos super-ricos",
cujo prefixo musical é uma exaltação ao dinheiro e ao poder.
A desigualdade social foi tema recorrente no recente Fórum
Econômico de Davos, nas exortações do papa Francisco e no último discurso sobre
o Estado da Nação de Obama. Frequentemente o encontramos inflamando discussões
de economistas, analistas e políticos mundo afora. Seu corolário, a
redistribuição da riqueza, arrematou a mensagem do papa à elite econômica
reunida em Davos ("que a humanidade seja mais servida pela riqueza, não
dominada por ela") e vive indispondo Obama com o mumificato republicano no
Congresso e seus papagaios na mídia, que, ou desconversam, erguendo a bandeira
da "mobilidade social", ou apelam para a ignorância, acusando o
presidente de socialista, de incitar uma "guerra de classes", só
porque ele acredita que os podres de ricos (1% da população, os chamados
one-percenters) devem ser taxados para facilitar a mobilidade dos milhões de
americanos que já vivem abaixo da linha de pobreza.
Com as disparidades de renda existentes, priorizar a
mobilidade social não chega a ser uma utopia conservadora; é, na melhor das
hipóteses, um insulto à inteligência, um perverso faz de conta, um repelente
ideológico-partidário para manter intocado o bem-bom de uma plutocracia
obcecada pelo crescimento econômico a qualquer preço, que aceita o PIB como a
métrica que determina o progresso social. Como é dessa plutocracia que vem o
grosso da grana para as campanhas eleitorais de republicanos e democratas,
afora outras benesses, esse nó não desata.
Em sua edição de 24 de janeiro, o Wall Street Journal
estampou uma carta indignada do financista Thomas Perkins, em que o nababo do
Vale do Silício comparava a taxação progressiva dos ricaços aventada pelo
governo Obama à "Noite dos Cristais" (quando nazistas alemães e
austríacos depredaram sinagogas e lojas de judeus, em 1938) e acusava o
presidente de demonizar e perseguir quem tem muito dinheiro, uma repetição da
atoarda de outro prócer do "dinheiro organizado", Stephen Schwarzman,
que há quatro anos comparou as propostas para eliminar as brechas fiscais que
haviam facilitado o colapso financeiro de 2008 (custo para cada americano: U$ 120
mil) à invasão da Polônia pela Alemanha nazista.
Sem se dar ao trabalho de esclarecer que Obama não é Hitler,
nem Lenin, o Nobel de Economia e colunista do New York Times Paul Krugman caiu
na pele de Perkins e suas paranoias. Livrou a cara dos que outrora chamavam de
"capitães da indústria", pois afinal movem a economia, descarregando
sua ira sobre os "wheeler-dealers", os especuladores, a súcia do
dinheiro-que-só-produz-dinheiro, cujo cinismo Tom Toro tão bem retratou dia
desses num cartum para a revista New Yorker, em que um ricaço propõe a outros
dois que tomem uma dose de champanhe Clos de Vougeot Grand Cru ’88 toda vez que
Obama se referir à "desigualdade de renda" no discurso sobre o Estado
da Nação.
Não deu nem para esvaziar metade da garrafa de champanhe. Obama,
infelizmente, tampouco é Franklin Roosevelt.
Sérgio Augusto - O Estado de S. Paulo
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